No momento em que é eleito um papa, o primeiro latinoamericano, essa pergunta parece ir na contramão da euforia mundial. Porém não é minha. Ela está inserida em um belo texto de um p
adre
casado, belga, com mais de 5O anos de Brasil, historiador e teólogo, mais de 20
livros publicados. Mora em Salvador. Dedica-se agora ao estudo das origens do
cristianismo. Chama-se Eduardo Hoornaert.
O anúncio da renúncia de Bento XVI me surpreendeu, como aconteceu a muitas
pessoas. Impressiona-me a simplicidade com que ele expõe seus sentimentos e
penso que, desse modo, ele desbloqueia a visão estática que temos do papado e
abre um espaço para discussões em torno do governo da igreja católica. É isso
que pretendo fazer neste texto. Minha pergunta é a seguinte: será que a igreja
católica precisa mesmo de um papa? Vou por pontos.
1. O
papado
O papado
não está ligado à origem do cristianismo. O termo ‘papa’, por exemplo, não
aparece no novo testamento. Quanto aos versos do evangelho de Mateus (‘tu és
Pedro e sobre essa pedra construirei minha igreja’: 16, 18), que costumam ser
invocados para legitimar o papado, há de se lembrar que a exegese atual é
taxativa em afirmar que não se pode isolar um texto de seu conjunto literário e
transformá-lo em oráculo. Ora, os versos de Mateus funcionam, pelo menos na
instituição católica, como um oráculo. Para quem lê os evangelhos em contexto
fica claro que não dá para se imaginar que Jesus tenha planejado uma dinastia
apostólica de caráter corporativo, baseada em sucessão de poderes. As palavras
‘tu és Pedro’ não condizem com a instituição do papado. Foi o bispo Eusébio de
Cesareia, teórico da política universalista do imperador Constantino, que no
século IV começou a redigir listas de sucessivos bispos para as principais
cidades do império romano, em muitos casos sem verificar a veracidade dos nomes
arrolados, na tentativa de adaptar o sistema cristão ao modelo romano da sucessão
dos poderes. Esse bispo-historiador é o criador da imagem de Pedro-papa. Mas a
pesquisa histórica aponta outro horizonte e mostra que a palavra ‘papa’ (pope),
que pertence ao grego popular do século III, é um termo derivado da palavra
grega ‘pater’ (pai) e expressa o carinho que os cristãos tinham por
determinados bispos ou sacerdotes. O termo penetrou no vocabulário cristão,
tanto da igreja ortodoxa como da católica. No interior da Rússia, até hoje, o
pastor da comunidade é chamado ‘pope’. A história conta que o primeiro bispo a
ser chamado ‘papa’ foi Cipriano, bispo de Cartago entre 248 e 258 e que o termo
‘papa’ só apareceu tardiamente em Roma: o primeiro bispo daquela cidade a
receber oficialmente esse nome (segundo a documentação disponível) foi João I,
no século VI.
2. O
episcopado
Em
contraste com o papado, a instituição episcopal deita raízes sólidas na origem
do cristianismo, pois se refere a uma função já existente no sistema sinagogal
judeu. A palavra ‘bispo’ (que significa ‘supervisor’) se encontra diversas
vezes nos textos do novo testamento (1Tm 3, 2; Tito 1, 7; 1Pd 2, 25 e At 20,
29), assim como o substantivo ‘episcopado’ (1Tm 3, 1). Nas sinagogas judaicas,
o ‘epíscopos’ era responsável pela boa ordem nas reuniões e as primeiras
comunidades cristãs nada mais fizeram que adotar e adaptar o nome e a função.
3. A
luta pelo poder
A partir
do século III desencadeou-se, entre os bispos das quatro principais metrópoles
do império romano (Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Roma), uma dura luta
pelo poder. Essa luta era particularmente dramática na parte oriental do
império, onde se falava a língua grega. Os bispos em litígio foram chamados
‘patriarcas’, um termo que acopla o ‘pater’ grego com o poder político
(‘archè’, em grego, significa ‘poder’). O patriarca é ao mesmo tempo pai e
líder político. Nos inícios, Roma participava pouco dessa disputa, por ficar
longe dos grandes centros do poder da época e usar uma língua menos universal
(apenas usada na administração e no exército do sistema imperial romano), o
latim. Por sua vez, Jerusalém, cidade ‘matriz’ do movimento cristão, ficou fora
do páreo por ser uma cidade de pouca importância política.
Mesmo
assim, Roma se fazia valer na parte ocidental do império. O já citado bispo
Cipriano, de Cartago, reagiu com energia diante das pretensões hegemônicas do
bispo de Roma e insistiu: entre bispos tem de reinar uma ‘completa igualdade de
funções e poder’. Mas o curso da história foi implacável. Os sucessivos
patriarcas de Roma conseguiram ampliar sua autoridade e elevaram o tom da voz,
principalmente após a bem sucedida aliança com o emergente poder germânico no
ocidente (Carlos Magno, 800). As relações com os patriarcas orientais
(principalmente com o patriarca de Constantinopla) se tornaram sempre mais
tensas até que aconteceu a ruptura de 1052. Aí começou a história da igreja
católica apostólica romana propriamente dita.
4. O
papa fica do lado dos mais fortes
Uma vez
‘dona do pedaço’, Roma foi elaborando de forma sofisticada a ‘arte da corte’
que ela aprendera com Constantinopla. Ao longo dos séculos, praticamente todos
os governos da Europa ocidental aprenderam por sua vez a arte diplomática com
Roma. Trata-se de uma arte nada edificante, que inclui hipocrisia, aparência,
habilidade em lidar com o povo, impunidade, sigilo, linguagem codificada
(inacessível aos fiéis), palavras piedosas (e enganosas), crueldade encoberta
de caridade, acumulação financeira (indulgências, ameaça do inferno, pastoral
do medo etc.). A imponente ‘História criminal do cristianismo’, em 10 volumes,
que o historiador K. Deschner acaba de concluir, descreve essa arte
eminentemente papal em detalhes.
Foi
principalmente por meio da arte diplomática que, ao longo da idade média, o
papado teve sucessos fenomenais. Sem armas, Roma enfrentou os maiores poderes
do ocidente e saiu vitoriosa (Canossa 1077). Como resultado, a igreja foi
afetada, no dizer do historiador Toynbee, pela ‘embriaguez da vitória’. O papa
perdeu contato com a realidade do mundo e passou a viver num universo irreal,
repleto de palavras sobrenaturais (que ninguém entende). Como bem observa Ivone Gebara,
algumas dessas palavras ainda hoje estão em voga, como quando se diz que o
Espírito Santo elegerá o próximo papa.
Com o
advento da modernidade, o papado perde paulatinamente espaço público. No século
XIX, principalmente durante o longo pontificado de Pio IX, a antiga estratégia
de se opor aos ‘poderes deste mundo’ não funciona mais. Não traz mais vitórias,
registra apenas derrotas. Então, o papa Leão XIII resolve mudar a estratégia e
inicia uma política de apoio aos mais fortes, uma estratégia que funciona
durante todo o século XX. Bento XV sai da primeira guerra mundial ao lado dos
vitoriosos; Pio XI apoia Mussolini, Hitler e Franco, enquanto Pio XII pratica a
política do silêncio diante dos crimes contra a humanidade perpetrados durante
a segunda guerra mundial, à custa de incontáveis vidas humanas. Após uma breve
interrupção com João XXIII, a política de apoio silencioso aos fortes (e de
palavras genéricas de consolo aos perdedores) prossegue até os nossos dias.
5. Hoje,
o papado é um problema
Por tudo
isso, pode-se dizer hoje que o papado não é uma solução, é um problema. Não se
diz o mesmo do episcopado, pois este registra, nos últimos tempos, páginas
luminosas. Além dos bispos mártires (como Romero e Angelelli), tivemos aqui na
América Latina uma geração de bispos excepcionais entre os anos 1960 e os anos
1990. Além disso, o concílio Vaticano II avançou a ideia da colegialidade
episcopal, no intuito de fortalecer o poder dos bispos e limitar o poder do
papa. Mas tudo esbarrou num muro intransponível feito de mistura entre preguiça
mental (a lei do menor esforço), fascínio pelo poder (Walter Benjamin),
disponibilidade do fraco diante do poderoso (Machiavelli) e arte cortesã
(Norbert Elias). Mesmo assim, vale lembrar que o catolicismo é maior que o papa
e que a importância dos valores veiculados pelo catolicismo é maior que o atual
sistema de seu governo.
6. Pode
a igreja católica subsistir sem papa?
Pode a
França subsistir sem rei, a Inglaterra sem rainha, a Rússia sem czar, o Irã sem
aiatolá? A própria história se encarrega de dar a resposta. A França não se
acabou com a destituição do rei Luis XVI e o Irã certamente não se acabará com
o fim do reino dos aiatolás. Isso se aplica ao cristianismo, como comprova o
surgimento do protestantismo no século XVI. Haverá certamente resiliências e
saudosismos, tentativas de volta ao passado, mas instituições não costumam
desaparecer com mudanças de governo. Em geral, o movimento da história em
direção a uma maior democracia e participação popular é irreversível (ao que
parece). Cedo ou tarde, a igreja católica terá de enfrentar a questão da
superação do papado por um sistema de governo central mais condizente com os
tempos que vivemos.
Dentro
dessa lógica pode-se dizer que a atual ânsia em fazer prognósticos acerca do
futuro papa pode desviar a atenção do que é realmente importante. Pois não se
trata do papa, mas do papado como forma de governo. Compreende-se que a mídia,
nestes dias, se compraz em focalizar a figura do papa. Pois, para ela, o papa é
negócio. O sucesso do enterro do papa João Paulo II, alguns anos atrás, mostrou
aos planejadores da mídia as potencialidades financeiras de grandes eventos
papais. Com prazer, a mídia se encarrega hoje de divulgar os pontos básicos do
catecismo papal: o papa é o sucessor de Pedro, o primeiro papa; a eleição de um
papa, em última análise, é obra do Espirito Santo; que ninguém perca a
indulgência plenária concedida excepcionalmente por Deus por ocasião da
primeira bênção do novo papa. Eis o que veremos nas próximas semanas. Talvez
seja melhor não falar muito da eleição do futuro papa nestes dias, mas
trabalhar sobre temas que preparem a igreja do futuro.
Termino
trazendo aqui dois exemplos recentes em torno dessa problemática. Poucas
pessoas sabem que, nos idos de 1980, o cardeal Aloísio Lorscheider chegou a
discutir com o papa João Paulo II acerca da descentralização do poder na
igreja. Não existe registro escrito ou fotografado dessa discussão, mas parece
que o papa se mostrou aberto às sugestões do cardeal brasileiro, conforme
consta na encíclica ‘Ut unum sint’. Esse ponto foi comentado por José Comblin
num de seus últimos trabalhos: ‘Problemas de governo da igreja’ (veja
internet). Penso que o papa só não avançou porque não percebia na igreja uma
real vontade política em avançar na direção da descentralização do governo.
Nesse caso, ficou claro que o problema não é o papa, mas o papado.
Um
exemplo bem diferente, mas que aponta na mesma direção, é dado por outro bispo
brasileiro, Helder Câmara. Chegando a Roma para participar do Concílio Vaticano
II (ele não tinha viajado à Europa antes), o bispo brasileiro estranhou os
comportamentos na corte romana a ponto de ter alucinações, como conta em suas
cartas circulares. Certa vez, por ocasião de uma sessão na basílica de São
Pedro, ele teve a impressão de ver o imperador Constantino invadir a igreja
montado num garboso cavalo a pleno galope. Outra vez, ele sonhou que o papa
ficou louco, jogou sua tiara no Tibre e atou fogo no Vaticano. Ele dizia, em
conversas informais: o papa faria bem em vender o Vaticano à Unesco e alugar um
apartamento no centro de Roma. Pude verificar pessoalmente, em diversas
ocasiões, que Dom Helder detestava o ‘sigilo papal’ (um dos instrumentos do
poder de Roma). Ao mesmo tempo, o bispo brasileiro mantinha amizade com o papa
Paulo VI, o que mostra, mais uma vez, que o problema não é o papa, mas sim o
papado enquanto instituição.