Somos bombardeados com notícias apavorantes de crimes, assassinatos e outras anomalias do comportamento humano.
Uma entrevista com psicólogo
canadense, que a Veja publicou em 2009, sobre psicopatas é tema pesado e
problemático, porém vale a pena ler.
O
trabalho do psicólogo canadense Robert Hare, de 74 anos, confunde quase tudo o
que a ciência descobriu sobre os psicopatas nas últimas duas décadas. Foi ele
quem, em 1991, identificou os critérios hoje universalmente aceitos para
diagnosticar os portadores desse transtorno de personalidade. Hare começou a
aproximar-se do tema ainda recém-formado, quando, trabalhando com detentos de
uma prisão de segurança máxima nas proximidades de Vancouver, ficou intrigado
com uma questão: "Eu queria entender o motivo pelo qual, em alguns seres
humanos, a punição não tem efeito algum". A curiosidade levou-o até os
labirintos da psicopatia – doença para a qual, até hoje, não se vislumbra cura.
"O que tentamos agora é reduzir os danos que ela causa, aos seus
portadores e aos que os cercam." (abril de 2009)
Um psicopata nasce psicopata?
Ninguém nasce psicopata. Nasce com tendências para a psicopatia.
A psicopatia não é uma categoria descritiva, como ser homem ou mulher, estar
vivo ou morto. É uma medida, como altura ou peso, que varia para mais ou para
menos.
O senhor
é o criador da escala usada mundialmente para medir a psicopatia. Quais são as
características que aproximam uma pessoa do número 40, o grau máximo que sua
escala estabelece?
As principais são ausência de sentimentos morais – como remorso
ou gratidão –, extrema facilidade para mentir e grande capacidade de
manipulação. Mas a escala não serve apenas para medir graus de psicopatia.
Serve para avaliar a personalidade da pessoa. Quanto mais alta a pontuação,
mais problemática ela pode ser. Por isso, é usada em pesquisas clínicas e
forenses para avaliar o risco que um determinado indivíduo representa para a
sociedade.
Todo psicopata comete maldades?
Não necessariamente com o intuito de cometer a maldade. Os
psicopatas apresentam comportamentos que podem ser classificados de perversos,
mas que, na maioria dos casos, têm por finalidade apenas tornar as coisas mais
fáceis para eles – e não importa se isso vai causar prejuízo ou tristeza a
alguém. Mas há os psicopatas do tipo sádico, que são os mais perigosos. Eles não
somente buscam a própria satisfação como querem prejudicar outras pessoas,
sentem felicidade com a dor alheia.
Até que
ponto a associação entre a figura do psicopata e a do serial killer é legítima?
A estimativa é que cerca de 1% da população mundial preencheria
os critérios para o diagnóstico de psicopatia. Nos Estados Unidos, haveria,
então, cerca de 3 milhões de psicopatas. Se o número de serial killers em
atividade naquele país for, como se acredita, de aproximadamente cinquenta,
isso significa que a participação desses criminosos no universo de psicopatas é
muito pequena. Por outro lado, segundo um estudo do psiquiatra americano
Michael Stone, cerca de 90% dos serial killers seriam psicopatas.
Em que
medida o ambiente influencia na constituição de uma personalidade psicopata?
Na década de 20, John B. Watson, um estudioso de psicologia
comportamental, dizia que, ao nascer, nós somos como páginas em branco: o
ambiente determina tudo. Na sequência, entrou em voga o termo sociopata, a
sugerir que a patologia do indivíduo era fruto do ambiente – ou seja, das suas
condições sociais, econômicas, psicológicas e físicas. Isso incluía o
tratamento que ele recebeu dos pais, como foi educado, com que tipo de amigos
cresceu, se foi bem alimentado ou se teve problemas de nutrição. Os adeptos
dessa corrente defendiam a tese de que bastava injetar dinheiro em programas
sociais, dar comida e trabalho às pessoas, para que os problemas psicológicos e
criminais se resolvessem. Hoje sabemos que, ainda que vivêssemos uma utopia
social, haveria psicopatas.
Como se chegou a essa
conclusão?
Na década de 60, vários estudiosos, inclusive eu, começaram a
pesquisar a reação de um grupo de psicopatas a situações que, em pessoas
normais, produziriam efeitos sobre o sistema nervoso autônomo. Quando se está
na expectativa da ocorrência de algo desagradável, a preocupação do indivíduo
transparece por meio de tremores, transpiração e aceleração cardíaca. Os
psicopatas estudados, mesmo quando confrontados com situações de tensão, não
exibiam esses sintomas. Isso reforçou a conclusão de que existem diferenças
cerebrais entre psicopatas e não psicopatas. Pouco a pouco, essas diferenças
vêm sendo mapeadas.
É
possível observar sinais que indiquem que uma criança pode se tornar um adulto
psicopata?
Não há nada que indique que uma criança forçosamente se
transformará num psicopata, mas é possível notar que algo pode não estar
funcionando bem. Se a criança apresenta comportamentos cruéis em relação a
outras crianças e animais, é hábil em mentir olhando nos olhos do interlocutor,
mostra ausência de remorso e de gratidão e falta de empatia de maneira geral,
isso sinaliza um comportamento problemático no futuro.
Os pais podem interferir nesse
processo?
Sim, para o bem e para o mal, mas nunca de forma determinante. O
ambiente tem um grande peso, mas não mais do que a genética. Na verdade, ambos
atuam em conjunto. Os pais podem colaborar para o desenvolvimento da psicopatia
tratando mal os filhos. Mas uma boa educação está longe de ser uma garantia de
que o problema não aparecerá lá na frente, visto que os traços de personalidade
podem ser atenuados, mas não apagados. O que um ambiente com influências
positivas proporciona é um melhor gerenciamento dos riscos.
Os psicopatas têm consciência
de que são diferentes?
A consciência, o processo de avaliar se algo deve ser feito ou
não, envolve não somente o conhecimento intelectual, mas também o aspecto
emocional. Do ponto de vista intelectual, o psicopata pode até saber que
determinada conduta é condenável, mas, em seu âmago, ele não percebe quão
errado é quebrar aquela regra. Ele também entende que os outros podem pensar
que ele é diferente e que isso é um problema, mas não se importa. O psicopata
faz o que deseja, sem que isso passe por um filtro emocional. É como o gato,
que não pensa no que o rato sente – se o rato tem família, se vai sofrer. Ele
só pensa em comida. Gatos e ratos nunca vão entender um ao outro. A vantagem do
rato sobre as vítimas do psicopata é que ele sempre sabe quem é o gato.
É muito difícil identificar um
psicopata no dia a dia?
Superficialmente, um psicopata pode parecer um sujeito normal.
Mas, ao conhecê-lo melhor, as pessoas notarão que ele é um indivíduo
problemático em diversos aspectos da vida. Ele pode ignorar os filhos, mentir
sistematicamente ou apresentar grande capacidade de manipulação. Se é flagrado
fazendo algo errado, por exemplo, tenta convencer todo mundo de que está sendo
mal interpretado.
Um psicopata não sente amor?
Acredito que sim, mas da mesma forma como eu, digamos, amo meu
carro – e não da forma como eu amo minha mulher. Usa o termo amor, mas não o
sente da maneira como nós entendemos. Em geral, é traduzido por um sentimento
de posse, de propriedade. Se você perguntar a um psicopata por que ele ama
certa mulher, ele lhe dará respostas muito concretas, tais como "porque
ela é bonita", "porque o sexo é ótimo" ou "porque ela está
sempre lá quando preciso". As emoções estão para o psicopata assim como o
vermelho está para o daltônico. Ele simplesmente não consegue vivenciá-las.
Que figuras históricas podem
ser consideradas psicopatas?
É difícil dizer, porque seu comportamento é mediado por relatos
de terceiros, e não por um diagnóstico psiquiátrico. Mas o ditador da ex-União
Soviética Josef Stalin, por exemplo, era de tal forma impiedoso que talvez
possa ser considerado psicopata. O ex-ditador iraquiano Saddam Hussein é outro
exemplo. Eu ficaria muito surpreso se ele não preenchesse todos os critérios
para a psicopatia. Aliás, Saddam tinha um filho claramente psicopata (Udai Hussein, morto em 2003),
dirigente de um time de futebol. Quando o time perdia, ele torturava os
jogadores – ou seja, era sádico também. Já o líder nazista Adolf Hitler é um
caso mais complexo. Ele provavelmente não era só psicopata.
A psicopatia é incurável?
Por meio das terapias tradicionais, sim. Pegue-se o
modelo-padrão de atendimento psicológico nas prisões. Ele simplesmente não tem
nenhum efeito sobre os psicopatas. Nesse modelo, tenta-se mudar a forma como os
pacientes pensam e agem estimulando-os a colocar-se no lugar de suas vítimas.
Para os psicopatas, isso é perda de tempo. Ele não leva em conta a dor da
vítima, mas o prazer que sentiu com o crime. Outro tratamento que não funciona
para criminosos psicopatas é o cognitivo – aquele em que psicólogo e paciente
falam sobre o que deixa o criminoso com raiva, por exemplo, a fim de descobrir
o ciclo que leva ao surgimento desse sentimento e, assim, evitá-lo. Esse
procedimento não se aplica aos psicopatas porque eles não conseguem ver nada de
errado em seu próprio comportamento.
No Brasil, os psicopatas
costumam ser considerados semi-imputáveis pela Justiça. Os magistrados entendem
que eles até podem ter consciência do caráter ilícito do que cometeram, mas não
conseguem evitar a conduta que os levou a praticar o crime. Assim, se
condenados, vão para a cadeia, mas têm a pena diminuída. O senhor acha que, do
ponto de vista jurídico, os psicopatas são totalmente responsáveis por seus
atos?
Eu diria que a resposta é sim. Mas há divergências a respeito e
existem muitas investigações em andamento para determinar até que ponto vai a
responsabilidade deles em certas situações. Uma corrente de pensamento afirma
que o psicopata não entende as consequências de seus atos. O argumento é que,
quando tomamos uma decisão, fazemos ponderações intelectuais e emocionais para
decidir. O psicopata decide apenas intelectualmente, porque não experimenta as
emoções morais. A outra corrente diz que, da perspectiva jurídica, ele entende
e sabe que a sociedade considera errada aquela conduta, mas decide fazer mesmo
assim. Então, como ele faz uma escolha, deve ser responsabilizado pelos crimes
que porventura venha a cometer. Não há dados empíricos que deem apoio a um lado
ou a outro. Ainda é uma questão de opinião. Acredito que esse ponto será motivo
de discussão pelos próximos cinco ou dez anos, tanto por parte dos
especialistas em distúrbios mentais quanto pelos profissionais de Justiça.
O senhor está para publicar um
estudo sobre um novo modelo de tratamento para psicopatas. Do que se trata?
Trata-se de um modelo mais afeito à escola cognitiva, em que os
pacientes são levados a compreender que até podem fazer algo que desejem, sem
que isso seja ruim para os outros. Não vai mudá-los, mas talvez possa atenuar
as consequências de suas ações. É um tratamento com ambições relativamente
modestas – tem por objetivo a redução de danos.
OBS: psicopatia e sociopatia
são termos equivalentes, utilizados ora um ora outro pelos especialistas
conforme suas pesquisas ou seus objetivos..